Desde o século XIX, a literatura de cordel nordestina vem sendo usada como fonte de lazer, educação e cultura. Foi o primeiro jornal do homem do campo e sua cartilha de alfabetização. Vários nordestinos aprenderam a ler através dos folhetos de cordel. Sob a luz do lampião a querosene, as pessoas se reuniam em torno para a leitura dos grandes clássicos do gênero, além das novidades, recém-adquiridas nas feiras populares. Os variados gêneros da poesia popular eram debulhados pela genialidade dos leitores (ou ledores) e dos cantadores de folhetos, alguns profissionais. O conteúdo das estórias, sua rima cadenciada, sua poesia, ao mesmo tempo simples e elevada, eram um convite à alfabetização, ao conhecimento dos rudimentos da escrita. Milhares de pessoas tiveram no “livrinho de versos” seu primeiro e, quase sempre, único professor.
O CORDEL É BRASILEIRO
A literatura de cordel brasileira é considerada a mais perfeita forma de expressão popular literária em todo o mundo. No Nordeste, além do papel social, aproximando as pessoas, o cordel sempre teve uma finalidade lúdica, daí a popularidade de heróis traquinos como Pedro Malazarte, Cancão de Fogo e João Grilo. As estórias de encantamento representavam uma fuga temporária da realidade quotidiana e um mergulho num mundo onde tudo era possível. Os cangaceiros encarnavam um ideal de justiça numa época em que o coronel se postava como um senhor absoluto. Com o fim do cangaço, surgiram heróis da ficção como Rufino, o Rei do Barulho, José de Souza Leão e Antonio Cobra-Choca, sempre em papéis de vingadores das injustiças de que eram vítimas os sertanejos. Lampião, Padre Cícero, Getúlio Vargas e Frei Damião foram, e continuam sendo biografados pelos poetas populares, intérpretes do inconsciente coletivo. Leandro Gomes de Barros, morto há 90 anos, é, ainda hoje, o mais lido de todos os poetas do gênero e o principal responsável por sua difusão. O romance do pavão misterioso, de José Camelo de Melo Resende, é o best-seller do cordel, com milhões de exemplares vendidos em mais de 70 anos de edições e reimpressões ininterruptas. Hoje, merecem destaque os poetas Klévisson Viana, Rouxinol do Rinaré, Manoel Monteiro, Moreira de Acopiara, Marco Haurélio, João Gomes de Sá, Varneci Nascimento, Evaristo Geraldo entre outros. Muitas são as formas de se ilustrar um folheto de cordel, mas a mais característica é a xilogravura. São famosos os poetas xilógrafos José Costa Leite, Dila, Jota Barros, J. Borges, Stênio Diniz. Atualmente, uma outra geração se destaca com nomes como: Marcelo Soares, Erivaldo, Severino Borges e Nireuda Longobardi.
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LITERATURA DE CORDEL: TRADIÇÃO E MODERNIDADE
O início
A literatura de cordel que imperou no Nordeste, em fins do século XIX até o terceiro quartel do século XX, é, em linhas gerais, a poesia popular impressa e herdeira do romanceiro tradicional, da literatura oral (em especial dos contos populares, com predominância dos contos de encantamento). O cordel é um dos galhos da árvore da poesia popular, como o repente também o é. Mas cordel e repente não são a mesma coisa, pois, à medida que a árvore cresce, os galhos vão se distanciando, embora estejam unidos pela origem comum.
Cordelistas repentistas
Grandes repentistas se aventuram pelas sendas do cordelismo, a começar por Silvino Pirauá de Lima (1848-1913), um dos pioneiros da literatura popular, autor dos clássicos O Capitão do Navio e Zezinho e Mariquinha. Outros poetas que transitaram por ambas as linguagens foram José Galdino da Silva Duda, José Vila Nova (pai do famoso Ivanildo), Natanael de Lima, Severino Borges Silva, Antônio Eugênio da Silva, José Camelo de Melo Rezende, Luiz Gomes Lumerque, Francisco Sales de Arêda, e até mesmo Manoel D’Almeida Filho, todos já falecidos. Entre os vivos, vale citar José João dos Santos, o Mestre Azulão – paraibano radicado no Rio de Janeiro, um dos fundadores da feira de São Cristóvão - e Antônio Américo de Medeiros, potiguar estabelecido em Patos, Paraíba. Repentistas que se aventuram com sucesso pela literatura de cordel, apesar de raros nos dias atuais, existem. E gente do primeiro time: Geraldo Amâncio Pereira, Sebastião Marinho e Zé Maria de Fortaleza, para ficar em alguns.
Então, tiremos de uma vez por todas a dúvida: repentista não é cordelista, e cordelista não é repentista. Repentista PODE SER cordelista, e vice-versa. Mas não é regra. Quando a literatura de cordel, ou de folhetos, estava engatinhando e tomando forma, no tempo do poeta maior Leandro Gomes de Barros (1865-1918), viviam, na região do Teixeira, Paraíba, afamados cantadores, como Inácio da Catingueira, Romano da Mãe d’Água e o próprio Pirauá. Havia uma presença mais marcante da oralidade, pois, nesse tempo, eram poucos os alfabetizados. Mas, nas raras horas de ócio, as pessoas se reuniam em torno de alguém que soubesse ler, e se deleitavam com os romances fenomenais do Mestre Leandro: O Cachorro dos Mortos, Os Sofrimentos de Alzira, A Força do Amor, O Boi Misterioso. Outros poetas surgiram, alguns geniais.
Edições pioneiras
A edição e a comercialização da literatura de cordel atingiram um alto grau de profissionalismo com João Martins de Athayde, poeta paraibano estabelecido no Recife, e com Francisco Lopes, pernambucano levado pela onda migratória a Belém do Pará, onde dirigiu a lendária Guajarina. Outros editores que aperfeiçoaram o comércio do cordel foram José Bernardo da Silva, sucessor de Athayde, em Juazeiro do Norte, João José da Silva, com a Luzeiro do Norte em Recife e Manoel Camilo dos Santos, que pontificou entre Guarabira e Campina Grande. Outros nomes dignos de nota são José Alves Pontes (Guarabira), Joaquim Batista de Senna, paraibano que fez história no Ceará, e Manoel Caboclo, em Juazeiro.
O cordel no centro-sul
Em São Paulo, desde os anos de 1910, existia a Tipografia Souza, fundada pelo imigrante português José Pinto de Souza. Em 1950, desta tipografia surgiu a Editora Prelúdio, já dirigida pelos irmãos (adotivos) Arlindo Pinto de Souza, filho de José, e Armando Lopes. Dois anos depois, a editora publicaria seu primeiro cordel no formato que a consagrou, com capa em policromia e tamanho maior que o nordestino (13,5 x 18). Era um romance chamado o Amor que Venceu, de Antônio Soares de Maria. Um dramalhão muito ruim, diga-se. No mesmo período, o ex-garimpeiro e poeta popular Antônio Teodoro apresenta alguns originais à editora. Teodoro escrevia sobre tudo, para todos. Seu cordel Vida e Tragédia do Presidente Getúlio Vargas, de 1954, escrito após o suicídio de Getúlio vendeu, na primeira edição, impressionantes 260 mil exemplares. Começa o período áureo da literatura de cordel fora do Nordeste.
Decadência e renascimento
A passagem do tempo, os problemas econômicos, o êxodo rural e a escassez de bons poetas, após a geração que vai até a década de 1940 (Enéias Tavares dos Santos, João Firmino Cabral, Manoel Monteiro, João Lucas Evangelista, Mestre Azulão, Cícero Viera, entre outros) fizeram com que as trombetas fúnebres, na década de 1980, decretassem a morte do cordel.
A Editora Luzeiro, sucessora da Prelúdio, foi a única a sobreviver às crises e seguiu imprimindo os clássicos do gênero sob a orientação abalizada de Manoel D’Almeida Filho. Em 1990, Arlindo Pinto vende a editora à firma dos Irmãos Nicoló, e a Luzeiro passa por um período de dificuldades, no mesmo período em que morre Manoel D’Almeida Filho, amargurado ante o futuro incerto da editora e da própria literatura de cordel. Hoje, Gregório Nicoló é o único proprietário, e a Luzeiro, superando os problemas, renova as suas publicações, mantendo os títulos tradicionais, ainda com boa aceitação popular.
Nos anos de 1990, surge no Ceará uma nova geração de talentosos poetas populares, capitaneada por Klévisson Viana, que fundaria a Editora Tupynanquim, em Fortaleza. Klévisson, juntamente com seu irmão Arievaldo Viana, Rouxinol do Rinaré (nome de guerra de Antônio Carlos da Silva), Evaristo Geraldo, José Mapurunga e outros valores daquele estado restituíram à Fortaleza a tradição que teve nos poetas editores Moisés Matias de Moura, Luís da Costa Pinheiro e Joaquim Batista de Sena, firmes baluartes em outros tempos.
No Rio de Janeiro, Gonçalo Ferreira da Silva, cearense de Ipu, poeta com raízes eruditas e populares, concebeu e deu vida à Academia Brasileira de Literatura de Cordel, a ABLC, em 1988. Na ata de fundação, nomes históricos da literatura de cordel emprestam seu prestígio à entidade nascedoura. A Academia acabou se fundindo com a Casa de Cultura São Saruê, criada pelo General Humberto Pelegrino, e incorporou ao seu acervo preciosidades hoje à disposição de estudiosos e entusiastas do cordel. Outras entidades espalhadas pelo Brasil continuam a luta encampada por Rodolfo Coelho Cavalcante (1918-1986), maior liderança da história do cordel, responsável pelo Primeiro Congresso de Trovadores e Repentistas, realizado em Salvador em1955.
Clássicos do cordel e em cordel
Os maiores sucessos são os eternos clássicos O Pavão Misterioso (José Camelo de Melo Rezende), A Chegada de Lampião no Inferno (José Pacheco), As Proezas de João Grilo (João Ferreira de Lima) e A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum (Firmino Teixeira do Amaral). Lampião é a personagem histórica de maior projeção, e sua popularidade resiste à era digital. O maior romance em cordel até hoje escrito é O Direito de Nascer, de Manoel D’Almeida Filho, com 719 sextilhas. No formato livro, ressalve-se.
É nesse formato que o cordel está chegando a um outro público, além do tradicional. Em São Paulo, neste 2008, a editora Nova Alexandria, de São Paulo, lançou, sob coordenação do poeta Marco Haurélio, a Coleção Clássicos em Cordel, com releituras de obras clássicas por cordelistas. Já foram impressos O Corcunda de Notre-Dame, de João Gomes de Sá, e Os Miseráveis, de Klévisson Viana. Ambas adaptações de obras famosas do escritor francês Victor Hugo. Outros títulos estão a caminho.
A Hedra, outra casa editorial paulista, também acreditou no potencial da literatura popular em verso. A Coleção Biblioteca de Cordel traz poetas populares de diferentes épocas, como João Martins de Athayde, Minelvino Francisco Silva e Rodolfo Coelho Cavalcante. Também publica autores da atualidade, a exemplo de Klévisson Viana e Rouxinol do Rinaré.
Ilustrações
A ilustração não nasceu com o cordel. Antes eram usadas as chamadas “capas cegas”, sem qualquer ilustração. A xilogravura é um fenômeno relativamente recente, apesar de ter sido usada em 1907, na ilustração de uma capa de um folheto de Francisco das Chagas Batista enfocando Antônio Silvino. Fato isolado. Os desenhos e os clichês de cartões postais e com fotos de artistas de Hollywood eram os preferidos dos editores.
A xilogravura nunca teve ampla aceitação no meio popular, mas a Academia a adotou como a ilustração por excelência dos folhetos de cordel. Em favor da verdade, diga-se: a xilogravura é a ilustração mais característica, mas não a única. A essência de um bom cordel está no texto e não na capa, no embrulho. O cordel (texto e ilustração) evoluiu, e os poetas e editores antenados não abrem mão da tecnologia para oferecer ao público edições bem cuidadas. Sem esquecer a tradição, sem desprezar a modernidade. O cordel, por conta disso, chega vivo e com fôlego ao século XXI.
A VOLTA DE LAMPIÃO (Valeriano Félix)
Incentivado pelo texto do meu amigo virtual CacauBahia, encontrei nos arquivos da Editora Luzeiro este texto, do qual transcrevo algumas estrofes. Pelo menos no cordel, Lampião já voltou faz tempo:
Muitos sábios deste mundo Dizem com fé e verdade Que os mortos também retornam Dos confins da eternidade Vindo pagar neste mundo Até a última maldade.
Em um centro de renome Lá no Rio de Janeiro Lampião baixou um dia Trazendo medo ao terreiro Pois a morte não lhe tem Na tumba prisioneiro.
A alma vagando errante Não achou lugar no céu No purgatório também Um lugar ninguém lhe deu Para ficar nos infernos Lucifer não atendeu.
Vagabundo e padecente Andou, andou sem parar Baixando aqui e ali Com sede de se vingar As almas de seus algozes Sempre mais a torturar.
E num médium desvairado Baixou xingando os presentes Em um dava pontapés E noutro cravava os dentes E dizia nomes feios Daqueles mais repelentes.
E o dono do terreiro Rezava preces aos céus Dizendo: - Seu Lampião, Grande crimes são os seus Vá pro espaço, maldito, Que não “sois” mais do que Deus.
E dizia Lampião: - Mas quede o meu punhal? Meu rifle papo amarelo Me tragam por bem ou mal Metarei quem me matou Seja cabo ou general
Dê-me sangue, dê-me sangue, O meu suave licor Do sangue que derramei Trago na boca o sabor Fui ceifado pela morte, Mas sou cabra de valor.
Sou fantasma nos caminhos Do meu sertão sempre amado Com meus punhos para o ar Eu espero atormentado Que surja na minha frente O fantasma de um soldado.
E o médium destruía Toda coisa que encontrava A alma de Lampião Desse modo é que baixava. Dizendo que nem na morte A ninguém não se encontrava.
(...)
O trecho acima foi extraído do cordel A VOLTA DE LAMPIÃO, do poeta sergipano Valeriano Félix dos Santos, editado pela Prelúdio, antecessora da Luzeiro, de São Paulo. Em breve, a Luzeiro estará relançando mais esse cordel do extenso filão enfocando o Rei do Cangaço, na vida e na morte.